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Cleyton Feitosa

Atualizado: 10 de set. de 2020

Em fevereiro de 2019, Júnior Ratts entrevistou Cleyton Feitosa para o Observatório. Confira:

Observatório: Pensando nas últimas décadas, como você avalia as políticas públicas voltadas às populações LGBTs?


Cleyton Feitosa: A trajetória das políticas públicas LGBT acompanha a própria construção da democracia no Brasil, mas ela tem início ainda na década de 80 no contexto do enfrentamento da epidemia do vírus HIV, passa pela Constituinte com a tentativa de inclusão da ‘orientação sexual’ no texto final da Carta Magna, pelo financiamento de projetos elaborados por Organizações Não-Governamentais na década de 90, pelo lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos I em 1996 e pela criação da Secretaria Nacional de Direitos Humanos em 1997 no Governo FHC. Mas é a partir do programa Brasil Sem Homofobia lançado em 2004 no início do Governo Lula que se vê uma maior institucionalização dessa temática no Governo Federal com ações em diferentes Ministérios, ainda que com muitos enfrentamentos internos.


O Governo Dilma deu sequência a ações da gestão anterior e criou novas estruturas, mas foi marcado por uma forte reação de setores opositores com destaque para famosa bancada da bíblia no Congresso Nacional. O episódio que melhor ilustra esse período foi a suspensão do programa Escola Sem Homofobia pela ex-Presidenta sob a afirmação de que ‘o governo não faria propaganda de opção sexual’. No entanto, como gesto derradeiro de Dilma Rousseff, foi publicado o Decreto Nº 8.727 de 2016 que passa a reconhecer o nome social das pessoas trans na administração pública federal. Minha avaliação é a de um caminho tortuoso, marcado por grandes e rápidos avanços (como os que ocorreram no STF), mas com significativas tensões e simbólicos recuos.


Em suma, nenhum dos avanços teria ocorrido não fosse o protagonismo do movimento social assim como não teríamos os retrocessos sem o engajamento intenso da classe política evangélica.

Observatório: Quais políticas, programas e serviços voltados às populações LGBTs você poderia mencionar?


Cleyton Feitosa: Como já mencionei, o programa Brasil Sem Homofobia (BSH) foi pioneiro porque significou um compromisso explícito de um setor estatal de relevo da República que é o Executivo Federal (acompanhado por estados e municípios a depender de cada gestão) e seus diferentes Ministérios.


Além disso, o BSH financiou muitas organizações da sociedade civil com o objetivo de executarem Centros de Referência LGBT que depois viriam a ser absorvidos por governos estaduais e municipais. O BSH ainda transferiu recursos para Núcleos e Grupos de Pesquisa Universitários impulsionando ações no âmbito da Educação Superior.


Depois disso, tivemos as Conferências Nacionais LGBT, a criação da Coordenação-Geral de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT na estrutura da Secretaria de Direitos Humanos, a instituição do Conselho Nacional LGBT, o Módulo LGBT do Disque 100, o Lançamento da Política Nacional de Saúde Integral da População LGBT no Ministério da Saúde, a publicação de Relatórios de Violência Homofóbica, a tentativa de consolidar um Sistema Nacional LGBT e, mais recentemente, um Pacto Nacional de Enfrentamento à LGBTfobia. Houveram outras iniciativas, mas as ações citadas formam um panorama geral das políticas e serviços criados em âmbito nacional.


Observatório: Tendo em mente o tema da interseccionalidade, quais campos ou sistemas de governança pública avançaram e quais não avançaram?


Cleyton Feitosa: Essa é uma questão complexa e que demanda maiores investigações em cada setor da política pública. Na Educação, por exemplo, tivemos a criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) no Governo Lula, responsável por diversas ações no âmbito educacional - formações continuadas, premiações, elaboração de material didático, apoio a eventos, etc. - que acabou de ser desmontada agora no Governo Bolsonaro.


Eu não saberia dizer se a Educação foi a área que mais avançou na questão LGBT, mas certamente foi a mais atacada pelos opositores dos direitos LGBT, principalmente após a falsa retórica da ‘ideologia de gênero’ que afirma que professores estariam erotizando crianças e influenciando-as a serem homossexuais e transexuais.


Na Saúde, histórica aliada da população LGBT, ampliou-se as políticas focadas na questão da Aids para uma dimensão mais integral da vida humana incluindo ações de promoção da saúde mental e do processo transexualizador com a criação de ambulatórios específicos. Por outro lado, determinadas campanhas envolvendo a prevenção de infecções sexualmente transmissíveis e do vírus HIV sofreram fortes ataques morais.


Na Psicologia, há um esforço deliberado de agentes LGBTfóbicos para suspender os efeitos da resolução que proíbe terapias de reversão da homossexualidade. A ameaça principal que ronda a saúde é, além da ausência do princípio constitucional da laicidade por parte de gestores e gestoras públicas, a sanha dos empresários dos Planos de Saúde que atacam o Sistema Único de Saúde para aumentar seus lucros no setor privado.


A Cultura é outro exemplo de avanço e retrocesso: no passado foram lançados editais de fomento às Paradas do Orgulho LGBT, assim como foi criado um Comitê Técnico de Cultura LGBT no Ministério da Cultura com a participação de ativistas e produtores culturais LGBT. Na atualidade, esses editais foram suspensos e o Comitê parou de funcionar. Aliás, o Ministério da Cultura foi extinto no presente governo.


Também tivemos tímidas, mas importantes, ações em diferentes áreas como a Segurança Pública e Assistência Social ao passo em que áreas como a do Trabalho, Emprego e Renda ficaram omissas em relação à população LGBT.


Observatório: Como você averigua os impactos/efeitos do Golpe que afastou a presidenta Dilma sobre as políticas LGBTs?


Cleyton Feitosa: O Golpe de 2016 foi muito prejudicial para a população brasileira de modo geral pela imposição de setores da classe política, empresarial, midiática e jurídica de um governo à revelia da soberania e da decisão eleitoral feita pelo povo brasileiro nas urnas.


Um país com sua democracia debilitada põe em risco os segmentos mais vulneráreis porque as instituições já não funcionam como deveriam e a legislação tende a se afrouxar mais ainda para quem precisa dela.

Do ponto de vista da estrutura do Executivo Federal, assistimos a um movimento bastante ambíguo: a Coordenação-Geral LGBT foi transformada em Diretoria de Promoção dos Direitos LGBT, o que, à princípio significaria um fortalecimento da pauta no então Ministério dos Direitos Humanos. Contudo, o que se viu foi uma diminuição de recursos destinados à pasta, o que impacta diretamente no trabalho desenvolvido pela equipe.


Realizei em 2018 uma entrevista com a titular da Diretoria LGBT Marina Reidel, publicada na edição n. 02 da REBEH (Revista Brasileira de Estudos da Homocultura) justamente para tentar apreender o que representou o Governo Temer na temática LGBT. Eu entendo que a estrutura administrativa foi mantida (como o Conselho Nacional LGBT, por exemplo), bem como algumas ações, campanhas e eventos, mas a dotação orçamentária da Diretoria LGBT sofreu uma redução significativa após a aprovação da PEC 55 que limita investimentos públicos nas áreas sociais e nas chamadas políticas universais como a Educação, a Saúde e a Assistência Social. Embora se tenha tentado, sem sucesso, realizar uma Reforma da Previdência que prejudicaria a população em geral, mas sobretudo a população trans (cuja expectativa de vida no Brasil gira em torno de 35 anos segundo o próprio movimento social), foi feita uma Reforma Trabalhista que precariza direitos da classe trabalhadora, atingindo também o público LGBT, vítima constante de assédio moral no trabalho e portadora de muitas dificuldades quanto à garantia de direitos econômicos.


Por fim, o Governo Temer representou uma ponte para o futuro Governo Bolsonaro, inimigo declarado da população LGBT. Isso ficou ainda mais claro na transição governamental com as negociações e manutenções de quadros de destaque da gestão Temer no atual governo.


Observatório: Quais os desafios para as políticas LGBTs no contexto atual brasileiro?


Cleyton Feitosa: Os desafios continuam sendo os mesmos de sempre no sentido de disputar o reconhecimento estatal acrescido de uma conjuntura política abertamente LGBTfóbica e autoritária. Mesmo em períodos mais favoráveis, como nos Governos de Lula e Dilma, foi preciso fazer muitos enfrentamentos para institucionalizar as demandas e avançar na burocracia governamental.


Absolutamente nada foi dado. Tudo foi conquistado, fruto de muita luta do Movimento LGBT para fortalecer a cidadania e os direitos humanos.

O que temos na atualidade é um desafio hercúleo de lidar com um Executivo perverso, um Legislativo hostil e um Judiciário ora omisso, ora aliado da elite política. A minha designação de perversidade para o Executivo atual é feita com base em posturas como a da atual Ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, que num dia, ao reunir-se com lideranças do Movimento LGBT, prometeu a manutenção das políticas LGBT no Ministério e no outro, quando da sua posse no Ministério, atacou travestis e transexuais ao declarar que “menino veste azul e menina veste rosa”, uma nítida provocação a movimentos que contestam os rígidos papéis de gênero que geram inúmeras violências de cunho transfóbico e machista.


Outro exemplo de hipocrisia são os tweets do atual Presidente da República afirmando assegurar políticas LGBT enquanto seu Ministro da Educação desmonta a SECADI e fala em ideologia de gênero. O desafio central é manter políticas que garantem vidas, como a distribuição de medicamentos para pessoas vivendo com HIV, e avançar no combate à LGBTfobia, interagindo com um governo erigido sob discurso homofóbico durante a campanha eleitoral como as notícias falsas do kit gay. Isso nada mais foi do que explorar a homofobia histórica do brasileiro e dizer: “vocês agora poderão novamente discriminar esses veados que querem impor seu estilo de vida sobre nós e se tornar uma super raça com privilégios”.


Observatório: Em sua opinião, o que falta para que as populações LGBTs tenham acesso efetivo aos serviços e equipamentos LGBTs?


Cleyton Feitosa: Esse é um fenômeno multifatorial que vai desde a precariedade orçamentária e legal sofrida pelas políticas públicas LGBT, passa pela desinformação sobre esses serviços pelo público, pela ausência de dados oficiais sobre as condições de vida reais dessa população e culmina na LGBTfobia institucional que dificulta ou impede o acesso a serviços públicos nas diferentes áreas do Estado.


Um exemplo da precariedade dessas políticas é demonstrada no meu livro Políticas Públicas LGBT e Construção Democrática no Brasil ao analisar o funcionamento de um Centro Estadual de Combate à Homofobia em Pernambuco: a equipe do órgão tinha muitas dificuldades para acessar o público LGBT do interior do estado por falta de estrutura básica como o transporte. Também não há legislação sólida no Legislativo que institucionalize essas políticas com dotação orçamentária adequada.


Os governos têm dificuldades de divulgar ações específicas, quando existentes, para a população LGBT e geralmente não contam com o apoio da imprensa nessa comunicação. Os gestores não conhecem bem a realidade dessa população e não há investimentos sólidos em informação estatística sobre as desigualdades sociais de LGBT. Servidores públicos de diferentes setores e órgãos, como escolas ou postos de saúde, só para ficar nesses exemplos, permitem que seus valores morais ou religiosos interfiram na prestação de atendimento a essas pessoas, reproduzindo preconceitos, estigmas e violências que os e as afastam dos serviços.


Observatório: Como você analisa o atual quadro dos direitos humanos no Brasil em relação à população LGBT?


Cleyton Feitosa: Os direitos humanos como um todo no Brasil estão ameaçados, sejam os direitos civis e políticos, sociais e econômicos, culturais e ambientais, entre outros. A democracia foi solapada desde o Golpe de 2016, as instituições estão desacreditadas na garantia da defesa da democracia, entendida como um regime igualitário em que o povo governa a si sob o império da lei e da busca pela justiça social.


Temos líderes políticos encarcerados como o ex-Presidente da República Lula. Os grupos vulneráreis foram atacados e usados como plataforma política opositora ao reconhecimento de seus direitos. Aqui me refiro às mulheres, negros, índios e, evidentemente, a população LGBT, talvez a mais perseguida nas últimas eleições com difusão de incontáveis fake news nas redes sociais e episódios concretos de violência verbal, física e letal. As eleições presidenciais sofreram graves interferências políticas e jurídicas, avalizadas pelo nosso tribunal eleitoral. O governo central, ator crucial na resolução de conflitos, foi eleito com discurso persecutório contra a população LGBT e ativistas de direitos humanos, o que me faz avaliar o atual quadro como extremamente difícil a um quadro de avanço civilizatório no Brasil.


Mais que nunca precisamos enfrentar as arbitrariedades e violações de direitos unidos, com muita aliança e solidariedade entre os movimentos sociais, e com apoio de instâncias internacionais.


Entrevista por Júnior Ratts

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