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Luiz Mott

Atualizado: 10 de set. de 2020

Luiz Roberto de Barros Mott é um antropólogo, historiador e pesquisador, e um dos mais conhecidos ativistas brasileiros em favor dos direitos civis LGBT. Luiz Mott é uma das figuras mais conhecidas do movimento LGBT e foi considerado um dos gays mais poderosos do mundo em uma lista feita pela revista americana Wink



Observatório: Você é um dos mais conhecidos ativistas e historiadores dos direitos LGBTs no Brasil. Numa época que pouco se falava acerca de homossexualidade, como foi possível levantar dados acerca dos crimes cometidos contra LGBTs?


Luiz Mott: Eu me formei na Universidade de São Paulo (USP) em Ciências Sociais, no ano de 1968. Depois da formatura, passei dois anos na França, cursando mestrado em Etnologia. Quando voltei fui contratado como professor de Antropologia na UNICAMP em 1972 e me casei, porque eu era um gay egodistônico - quando os pensamentos sobre impulsos, atitudes, comportamentos e sentimentos sobre si contrariam e perturbam a própria pessoa. Eu não queria ser gay e, após cinco anos de um casamento com duas filhas, me dei conta que estava vivendo uma fantasia. Então eu me desquitei, na época, assumi minha homossexualidade e me mudei pra Bahia à procura de mais liberdade.


Em 1979, eu estava com meu namorado discretamente assistindo o pôr do sol no Farol da Barra quando um machão me deu um bofetão na cara, o que me machucou profundamente. Na época, eu já tinha escrito um artigo para o jornal Lampião da Esquina sobre o movimento gay fundado em São Paulo e no Rio. Eu resolvi então fundar o Grupo Gay da Bahia em 1980, o qual se tornou o mais dinâmico da América do Sul até os anos 2000. Logo que fundei o grupo decidimos fazer um boletim mimeografado com 300 a 400 exemplares.


Achei que era importante documentar os assassinatos de homossexuais para mostrar que a gente não estava pedindo privilégios ou filigranas, e sim nossa existência, que era profundamente ameaçada. Assim, a partir do Jornal Lampião, eu fiz um levantamento de todos os crimes que tinham sido registrados na década de 60 e 70.

No primeiro boletim, já divulguei uns vinte assassinatos, e a partir daí todos os meses comecei a sistematizar esses dados. Hoje já dispomos de mais de quatro mil registros de assassinatos e consequentemente também de suicídios LGBT no Brasil. É o único banco de dados tão numeroso no mundo inteiro. Infelizmente, a Associação Internacional de Gays e Lésbicas não faz esse levantamento mundial. Por isso, os nossos dados são usados pelo Departamento de Estado norte americano e citados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal. O próprio Bolsonaro já citou negativamente a existência desses dados.


Foi esse insight desde a fundação do movimento que nos permitiu acumular esse material juntamente com os dados das prisões de sodomitas pela inquisição portuguesa do século XVI ao século XIX, período no qual houve aproximadamente quatro mil denúncias, 500 processos e trinta sodomitas foram queimados. Esses dois bancos de dados - os dos sodomitas e o dos LGBT do século XX e XXI - constituem os dois acervos mais significativos que o GGB tem acumulado até o momento.


Observatório: Como era a relação da polícia e da sociedade com a criação de um ambiente favorável aos crimes contra LGBTs?


Luiz Mott: Eu costumo dizer que o Brasil é um país extremamente contraditório, porque tem um lado cor de rosa, com a maior parada gay do mundo, importantes associações LGBT maiores que as das América do Sul, tem Roberta Close e agora Pabllo Vittar eleitas como modelos de beleza da mulher brasileira. Porém, ao mesmo tempo, nós temos o lado vermelho-sangue que é o Brasil campeão mundial de mortes de LGBTs. Não é o país mais homofóbico em termos de legislação porque ainda há 13 países onde há a pena de morte para homossexuais, porém o risco de uma pessoa trans ser assassinada no Brasil é sete vezes maior que nos Estados Unidos. Como explicar essa contradição?


O Brasil, assim como os países escravistas do novo mundo, criou uma cultura de violência machista como critério, como condição do projeto de hegemonia colonial. Isso ocorreu porque os homens brancos representavam apenas 10% da população e tinham que dominar todas as mulheres de todas as raças e condições socioeconômicas, todos os homens negros e mestiços, os índios, escravos etc. Por isso que o macho latino-americano é muito mais violento que o macho ibérico. Foi daí que veio a nossa formação. De modo que para evitar que a sociedade mudasse essa hegemonia do macho, ele viu a efeminação, o travestismo como um perigo ao seu domínio. Por isso, criou-se uma cultura de extrema intolerância capitaneada pelo Estado civil: o Rei tinha direito de matar, enforcar ou outras formas de morte.


A Inquisição se encarregou da repressão, queimando e prendendo sodomitas de modo que as famílias tinham medo de ter sodomitas em casa porque elas ficavam inabilitadas e proscritas por três gerações, ascendente, descendente e colaterais. Dessa forma, a própria família era um agente de repressão, pois ela não queria perder a sua cidadania e a sua condição civil tanto na igreja quanto no exército, nos cargos públicos, civis etc.


Então isso fez com que essa homofobia, racismo, escravismo e machismo, obviamente, andassem sempre de mãos dadas porque era a cultura do macho para manter sua hegemonia.

Nesse sentido, quando termina a inquisição em 1821 foram as câmaras municipais, os governos provinciais, a polícia e as delegacias que se encarregaram da repressão contra o terceiro sexo (como eram chamados os considerados sodomitas) no sentido de impedir que contaminassem a família e contaminassem os jovens ao considerar a sodomia um castigo divino. O próprio Cardeal do Rio de Janeiro, no início da AIDS, disse que a doença era castigo de Deus contra a libertação sexual.


Voltando aos dias de hoje, o deputado federal mais eleito na Bahia, Sargento Isidoro, ex-gay segundo ele, pastor protestante e que não compareceu a audiência com a Daniela Mercury e que a chamou de sapatona e declarou vários insultos lesbofóbicos, disse também que o Brasil ia ser castigado por Deus por causa da libertinagem dos gays. De modo que nesse contexto é que a gente entende que a polícia e outras estruturas de poder são cães de guarda da moral dominante, no sentido de ver o homossexual, o gay, a lésbica, a travesti como ameaça a continuidade da nossa sociedade.


Observatório: A época de sua pesquisa, a nomenclatura LGBT ainda não existia. O que mudou em relação à violência contra essa população?


Luiz Mott: Quando eu me assumi homossexual publicamente em 1977, após cinco anos de casado, eu não sabia escrever a palavra homossexual. Não sabia se era com um “s” ou com dois “s”. Isso comprova o nível de desinformação, de alheamento ou alienação em que um homossexual egodistônico como eu vivia. Eu, na minha infância e juventude, nunca vi um gay, nunca vi uma travesti, nunca vi uma lésbica, não sabia da existência, tal como a Rainha Vitória que disse que não existiam lésbicas na Inglaterra. De modo que, ao me assumir, eu considerei que era fundamental em minha condição de antropólogo e cada vez mais ligado à história, a etnohistória, pesquisar esse universo. Isso porque eu desejava resgatar a nossa história e ter argumentos empíricos sólidos para mostrar, primeiro, a universalidade que existe e sempre existiu em todos os lugares e a naturalidade até, ou seja, a não patologia da homossexualidade, pois até então era considerada como um desvio e transtorno sexual de acordo com a classificação internacional de doenças.


Assim, na época, o insulto era sempre o mesmo: viado. Minha mãe chamava os gays de fresquinhos. O termo bicha já existia, o termo gay começava a aparecer assim como as boates gays apesar de serem pouco conhecidas. Então, na época, o termo homossexual era algo que se falava baixo ou com vergonha. Esse tabu contra o amor que não ousava dizer o nome persistia na própria maneira como se denominava essa realidade afetiva, amorosa, erótica, de modo que o termo gay que eu inclui como nome do nosso grupo em 1980 foi a primeira forma de oficializar esse nome. À época, o termo homossexual inicialmente incluía todas as categorias, inclusive as lésbicas e as travestis. Depois a palavra “gay” também passou a ser incorporada no Brasil, palavra proibida nos jornais norte americanos. Aqui no Brasil, se não me engano, até os anos 60, 70 a Folha de São Paulo e outros jornais evitavam a palavra “gay”. Depois, ela passou a ser mais palatável a tal ponto que as lésbicas se consideravam gays. A Marina Lima, por exemplo, falou “Eu sou gay”; a Martina Navratilova, uma das primeiras tenistas a se assumir lésbica, preferia o termo gay.


Passado o começo do movimento gay, as lésbicas exigiram ser chamadas de lésbicas, não de gays ou homossexuais femininas. Dessa maneira, o movimento passou então a incluir o termo lésbica na década de 90 quando foi fundada a ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis). Com a palavra travesti foi outra situação. Embora a palavra homossexual tenha aparecido pela primeira vez em 1867, na Alemanha, a palavra travesti, se não me engano, foi cunhada em 1930 pelo sexólogo gay, alemão, judeu Magnus Hirschfeld. A palavra lésbica, lesbiana, lésbia aparece desde o século 18, já com a conotação de homossexualidade feminina. De modo que, na década de 90, a palavra travesti (que já existia no teatro e mesmo nas ruas brasileiras desde o começo do século 20, mas, sobretudo ligado ao travestismo teatral ou ao travestismo ritual no candomblé e outras coisas) apareceu a partir dos anos 50 e 60 como sinônimo desse tipo de pessoas trans.


Nesse sentido, o Grupo Gay da Bahia foi quem introduziu o uso do feminino para se referir às travestis. Isso aconteceu depois de uma viagem minha, no fim dos anos 90, à Argentina, junto com Tony Reis e seu marido, David Harold. Lá, fomos conhecer a experiência de uma rádio gay em Buenos Aires e eu me dei conta que as travestis se chamavam no feminino, Las Travestis. Chegando ao Brasil eu fiz uma consulta, já na época da internet, e as principais lideranças travestis e transexuais acharam que era correto deixar de chamar o travesti e ser chamado a travesti. Agora é importante que as travestis mantenham sua especificidade em relação às transexuais porque travestis como a principal liderança atual, a Keila Simpson, criada pelo Grupo Gay da Bahia, capacitada por mim desde os anos 80 não se considerava mulher. Hoje, ela é uma travesti, vive socialmente como mulher, com nome feminino, documentos femininos etc., mas não é mulher. Então acho que essa especificidade muito latino-americana tem que ser preservada.


Observatório: Vamos voltar só um pouco antes de avançarmos. Quanto à relação dessa especificidade da violência em relação a essas identidades, o que você percebe na sua experiência? Essas designativas de algum modo ajudam a entender as dinâmicas da violência?


Luiz Mott: Eu defendo que, em se tratando de violência genérica contra a população LGBT, o termo homofobia é um guarda-chuva que engloba todas essas diferenciações e me baseio tanto em estudiosos como Borrillo como em legislações por que vários países condenam a homofobia legalmente como termo usado para incluir toda a variedade LGBT.


Agora em se tratando de discriminações específicas, contra o segmento lésbico, então acho justo dizer lesbofobia. Eu pergunto: o assassinato de Marielle, vereadora no Rio de Janeiro, é zero lesbofobia? Eu acho impossível responder que sim. Teve com certeza algum componente de lesbofobia. Os mandantes ou executores do crime ao se referirem a ela duvido que não tenham dito “Aquela sapatona, aquela sapata”. Pois bem, a mesma coisa aconteceu com a Dandara.


Embora a polícia do Ceará questione a conotação transfóbica, claro que tem que se falar em transfobia porque há os gritos dos agressores a insultando como travesti. Sendo assim, a minha defesa é que, sobretudo, crimes contra pessoas trans sempre devem ser considerados crimes de ódio e de transfobia.

Se analisarmos os casos das travestis, sobretudo, as travestis de pista praticantes da prostituição, iremos constatar que a maioria delas não estão nessa vida por livre escolha, mas sim porque foram rejeitadas, apartadas, marginalizadas. Assim, veremos que o envolvimento com o tráfico ou brigas entre as travestis por disputa de ponto ou até a questão do silicone são todas condições decorrentes da marginalização imposta pela transfobia institucional culturada na sociedade. De modo que há alguns questionadores de que a maioria dos crimes LGBT do relatório anual do GGB não são crimes de ódio.


Essa afirmação é um equívoco, porque todos os crimes contra travestis, que representam de 30% a 40% dos crimes anualmente, são resultado da transfobia cultural que marginalizou as travestis, que as apartou da sociedade.


Observatório: Como você percebe a trajetória dos crimes contra LGBTs nas últimas décadas? Você acredita que a política pública dos últimos governos alterou algo nesse quadro? Como se dá essa relação entre governo, segurança e violência?


Luiz Mott: Em relação às mortes de LGBTs no Brasil, incluindo homicídios e suicídios, uma das características que devem ser aventadas logo e sempre é a sua imprevisibilidade. Alguns dados se mantêm todos os anos desde que fazemos o levantamento das mortes, mas sempre há mais em números absolutos. Primeiro, matam-se mais gays, travestis e lésbicas. Ultimamente incluímos dentro da categoria travesti, as pessoas transexuais, transgêneros, não binárias, dentre outras. Incluímos também no levantamento das mortes também os heterossexuais que foram vítimas de assassinato por serem confundidos por gay ou estarem num contexto da cena LGBT. Portanto, proporcionalmente, as principais vítimas são as pessoas trans porque, embora representem estimativamente um milhão de habitantes, em relação aos 20 milhões de gays elas representam 0,5% da população nacional. Por isso proporcionalmente elas são muito mais vulneráveis. Essa é a primeira questão.


Outra característica dos assassinatos é a variação enorme dos meses em que os incidentes ocorrem. Ou seja, em um ano os meses de Janeiro e Fevereiro são os meses de picos mais altos, no ano seguinte não são. Quer dizer, há a variação sazonal e a variação por região. Assim, durante mais de uma década o Rio de Janeiro foi o campeão de assassinatos, e nos últimos anos não. A Bahia também já foi por vários anos campeã em termos absolutos, mas atualmente não é mais. O Nordeste, durante décadas, era o local onde mais se matava. Isso também mudou, pois ultimamente é o Norte seguido pelo Centro-Oeste, Nordeste, o Sudeste e o Sul. Contudo, algumas tendências parecem se manter. Por exemplo, a relação entre índice de desenvolvimento humano e menor violência e letalidade de LGBT é um dado importante. Nesse sentindo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul são geralmente os estados onde menos LGBTs foram vítimas ou de assassinato ou se mataram.


Seja como for, querendo ou não houve um aumento significativo de assassinatos nos últimos governos e nosso registro desses crimes melhorou porque antes nós recebíamos apenas recortes de jornal de todo o Brasil via correio, então o controle era muito menor. Ultimamente, através dos sites de pesquisa e dos aplicativos, nós temos um acompanhamento muito mais minucioso, nosso controle está cada vez mais eficiente. Apesar disso, a subnotificação é inegável, pois há os casos de gays, travestis e lésbicas que se matam e são assassinados que a gente não tem, pois a família escondeu ou a policia negou se tratar de LGBTcídio porque, em termos de poder publico, há uma negação sistemática da conotação de ódio no caso dos crimes contra a população LGBT. É raríssimo algum delegado reconhecer que crimes claramente de ódio são de fato causados pela LGBTfobia.


Há uma negação sistemática, há uma recusa por parte das delegacias e dos policiais de registrar o caso como de ódio, como LGBTfóbico. Eu mesmo quando fui à delegacia de idoso registrar uma queixa, mesmo tendo dito que eu era homossexual, me registraram como heterossexual. Depois foi que eu vi, me dei conta. Isso demonstra que - mesmo em estados como Rio de janeiro e outros onde existe uma determinação, uma portaria policial da Secretaria de Segurança Pública mandando que se inclua a variável orientação sexual, seja do declarante, da vítima, seja do autor - isso não é completado e a inexistência de estatísticas do IBGE e de outros órgãos é a demonstração da homofobia governamental que não só não garante locais seguros de frequência LGBT (como as imediações das boates, nas saunas, nas áreas de cruizing de pegação de travestis ou de outros espaços) como também não garante policiamento para essa população.


Assim, não há registros sistemáticos e confiáveis e persiste uma má vontade constante por parte da polícia, o que faz com que muitas e muitas vezes a vítima se torne réu quando vai denunciar que sofreu espancamento ou que foi ameaçada.

Observatório: Quais as expectativas em relação aos próximos anos, visto que o presidente eleito por muitas vezes se mostrou publicamente contrário aos direitos das populações LGBT?


Luiz Mott: Infelizmente o povo brasileiro elegeu um presidente que tem um histórico de declarações intolerantes contra todas as minorias sociais: contra as mulheres, os negros, os índios e populações LGBTs. Ele sintetiza o pensamento homofóbico dominante no país, o qual pode ser resumido na frase: “Prefiro um filho morto do que viado”.


Seguindo essa lógica, o atual presidente diz “prefiro meu filho morto num desastre de automóvel do que aparecer em casa abraçado com um bigodudo”, embora haja muitas fotos e vídeos do seu filho mais novo em cenas extremamente carinhosas com o seu primo índio. Pois bem, então, Bolsonaro sintetiza na potência máxima declarações homofóbicas contra o movimento, contra lideranças, contra a mim, contra Toni Reis e outros ativistas, caluniando e repetindo a mesma mantra de seu ex-amigo e assessor Magno Malta. Quer dizer, acusando os homossexuais de serem predominantemente pedófilos ou afirmando que os homossexuais e os LGBTs de forma geral foram vítimas de abuso sexual na infância.


Um dado curioso é que, durante a sua campanha eleitoral, registraram-se vários casos, supostamente, de agressões em que os agressores citaram o nome de Bolsonaro ao disseram “Bolsonaro vem ai”, “Bolsonaro vai acabar com essa viadagem”, etc. Nesse contexto, houve um pouco de paranoia dentro do movimento LGBT encabeçada por certas lideranças como a própria Dra. Maria Berenice que sugeriu que os LGBTs que desejassem casar o fizessem logo porque nada garantiria que seria mantida essa jurisprudência em relação ao casamento de pessoas do mesmo sexo.


Outro exemplo dessa paranoia aconteceu com o movimento de travestis o qual estimulou seus integrantes a registrar logo os nomes sociais, pois esse direito também não seria garantido segundo o movimento. O que nós temos de concreto são dois fatos. Primeiro, embora supostamente tenha aumentado a violência verbal e física contra pessoas LGBTs desde a campanha eleitoral até a eleição, em termos de violência letal foram registrados mais assassinatos em Janeiro e Fevereiro de 2018 do que a partir da campanha eleitoral que compreendeu os meses de Setembro/Outubro/Novembro. Em segundo, o mês de Janeiro de 2019, comparativamente aos últimos 10 anos, não é o mês que se matou mais homossexuais. Dessa forma, essas estatísticas, embora não tenha concluído o mês, apontam que as mortes nesse mês cheguem a 35, sendo que houve anos que em Janeiro se matou de 45 a 47 pessoas. Como pode se ver, as previsões das pitonisas do apocalipse não estão felizmente se cumprindo.


Agora, não votei em Bolsonaro, tenho 10 anos de denuncia contra ele, inclusive ameaçando processá-lo. O Grupo Gay da Bahia deu a ele o Troféu Pau de Sebo, “prêmio” conferido todos os anos aos inimigos dos gays. Quer dizer, tenho todo um histórico contra ele. Contudo, apoiei a contra gosto Haddad nessas eleições, pedindo perdão a Deus e pedindo desculpa ao povo. Ou seja, apoiei Haddad porque era a civilização contra a barbárie, apesar de Haddad ter assumido que foi ele quem vetou a distribuição do kit contra homofobia no governo Dilma para poupar o Palocci; kit que era a menina dos olhos do movimento LGBT, que custou dois milhões e que está até hoje engavetado lá nos porões do Ministério da Educação por culpa de Haddad. Ele negou a existência desse kit durante a campanha eleitora. Apesar disso eu apoio o Haddad juntamente com Toni Reis, fundador da ABGLT e que está há dois anos na Aliança Nacional LGBTI. Eu considero o Toni um dos gays na história do Brasil que teve maior visibilidade e maior atuação em termos da organização do movimento nacional.


Pois bem, Toni Reis e a Aliança Nacional e 33 entidades LGBTs estiveram juntos com a Ministra Damares dos Direitos Humanos para um primeiro diálogo. Eu apoiei essa iniciativa porque eu acho que não é cuspindo nem torcendo contra o governo que vamos conseguir progresso. Então enquanto for possível dialogar e exigir, impor e cobrar, eu ainda acho que é a melhor estratégia e, desde a eleição, felizmente Bolsonaro foi o único presidente da República que teve a ousadia de dizer que é a favor da agravação das penas contra crimes de ódio, inclusive crimes de ódio contra LGBTs. Além disso, a Ministra disse que vai estar nas portas das escolas para defender estudantes LGBTs contra o bullying e na rua para impedir a violência contra as travestis. Nenhum ministro na história do Brasil ousou falar tanto, assim como nenhum foi uma das personalidades na história politica do Brasil que mais falou com argumentos equivocados e com um discurso aparentemente estruturado contra as políticas LGBTs. Porém os dois, Bolsonaro e Damares, assim como o vice-presidente da República, tiverem um discurso após as eleições de defesa intransigente da Constituição.


Por isso eu acredito que se houver retrocessos no sentido de palavras ou de atos que estimulem ou que promovam a discriminação ou a perda de direitos da comunidade LGBT, devemos imediatamente dar um ultimato ao governo e passar para oposição radical. Contudo, enquanto há esperança de diálogo, ainda acho que é possível manter contato.


Observatório: As últimas mortes que foram noticiadas e repercutidas no debate público (a morte de Dandara e a morte de Ketlyn, dentre outras) foram assassinatos caracterizadas por um requinte de crueldade, uma extrema crueldade. Como explicar isso? Como entender isso do ponto de vista da nossa sociedade?


Luiz Mott: Lastimavelmente nós herdamos do escravismo um código exacerbado de violência. O uso da palmatória nas escolas é um bom exemplo; outros são os espancamentos de filhos, de mulheres, os feminicídios e tudo isso. Então os 60 mil casos anuais de assassinatos no Brasil são uma tragédia para nossa sociedade que recusa a se civilizar, a sair dessa barbárie. Não considero que necessariamente essa violência tenha se incrementado nos últimos anos, apesar de alguns casos chocantes. Contudo, o levantamento de anos anteriores revelam que os requintes de crueldade fazem parte de crimes de ódio como, por exemplo, 80 facadas, muitos golpes de faca pelo corpo todo, múltiplos instrumentos de tortura, queima do corpo, degolação. O vereador Remildo José dos Santos, na década de 80 em Coqueiro Seco, Alagoas, por ter dito que um filho do prefeito também era gay ou bissexual, foi arrancado de sua casa, foi torturado, teve as mãos cortadas, a cabeça cortada, arrancado os olhos, a língua, foi castrado.


O caso de castração de homossexuais é uma prova dessa barbárie, a começar por Zumbi dos Palmares, que essa é uma de minhas hipóteses de que ele provavelmente era gay por cinco pistas que podem ser encontrar no Google. Uma delas é o fato dele ter sido castrado e ter a sua genitália colocada na boca. Esta é uma forma frequente de mutilação de homossexuais. Nos últimos anos, mais de dez mil casos de gays assassinados no Brasil tinha esse mesmo requinte de crueldade. Nesta semana, um jovem arrancou o coração de uma travesti por achar que ela estava com o demônio. Ele arrancou o coração e colocou uma imagem de um santo dentro do peito dela e levou seu coração embrulhado num pano. Infelizmente um caso patológico, realmente.


Pois bem, então o aumento de violência na sociedade brasileira - sobretudo nas grandes capitais, com o crime organizado queimando, vandalizando no Ceará e em outros lugares - revela que o Brasil infelizmente está quase incontrolável com essa situação, que se reflete acima de tudo nos segmentos mais vulneráveis. Por isso, acredito ser importante a criação de políticas publicas que garantam a segurança em geral, principalmente em relação aos grupos mais vulneráveis. É preciso então que haja mais policiamento em lugares da cena gay de todas as capitais e cidades, que a polícia seja severa em investigar casos de LGBTfobia. Atualmente, apenas 10% dos autores de crime em geral e também dentro da população LGBT são identificados e a impunidade em grande parte se deve, no caso da população LGBT, a crimes ocorridos durante a madrugada em locais ermos.


O pior disso tudo é que a população não quer testemunhar para não se envolver com essa “baixaria” e os próprios gays deixam de denunciar por medo de serem maltratados nas delegacias; as famílias e vizinhos também se escondem e não prestam socorro, mesmo ouvindo gritos e pedidos de ajuda porque não querem se envolver nesse tipo de problema. Sendo assim, para evitar que essa mortalidade continue de forma tão cruel, além de políticas públicas, a própria comunidade LGBT deve evitar situações de risco. Não se trata de voltar para o armário, mas se trata sim de, em época de perigo, não sair na chuva para não se molhar. Então se deve evitar lugares ermos, evitar dar muita bandeira em locais onde se pode correr algum tipo de risco. Insisto, não quero que voltemos a perder nossos direitos, mas estrategicamente e temporariamente temos que evitar ser a próxima vítima e seguir os ensinamentos que Grupo Gay há quase 40 anos divulga: “Gay vivo não dorme com o inimigo”. Esse slogan funciona no sentido de conscientizar as pessoas a selecionar mais quem elas levam pra casa. É necessário evitar levar desconhecido pra casa, pois pra isso tem motel tem sauna, que são locais onde raramente esses crimes são cometidos.


E, sobretudo, é preciso denunciar, gritar, fazer registro de boletim policial, boletim de ocorrência nas delegacias, ir à mídia, ir aos grupos LGBTs, às associações de direitos humanos, à OAB e etc., porque quem cala consente e o grito é a arma inicial do oprimido.

Observatório: Vamos finalizar pedindo para você falar um pouco sobre a sua atual pesquisa e os dados mais atuais sobre violência. Como eles estão sendo coletados e que resultados você já pode apresentar?


Luiz Mott: O Relatório de mortes de LGBT+ do Brasil em 2018 inclui lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e também alguns poucos heterossexuais que morreram ou porque foram com LGBTs ou por estarem em ambientes da cena LGBT do Brasil. O relatório inclui também algum estrangeiro que tenha sido assassinado aqui e uma travesti brasileira que foi morta na Europa.


No total, registramos 420 mortes, sendo 320 homicídios e 100 suicídios. Diminuiu um pouco em relação a 2017 onde ocorreram 445 mortes. Durante os últimos anos, tem aumentado o índice de mortes. No governo Fernando Henrique Cardoso, registraram-se 127 mortes durante todo o seu mandato, 163 no governo Lula, 296 no governo Dilma e nos dois anos e quatro meses de Temer aumentou para 407.


Isso é chocante porque enquanto nos Estados Unidos com 330 milhões de habitantes, mataram-se no ano passado 28 transexuais, no Brasil com 208 milhões de habitantes, registraram-se 164 mortes. Por seguimentos: 45% gays, 39% travestis 12% lésbicas, 2% bissexuais e 1% heterossexuais.


O perfil das vitimas: 21% dos LGBTs, quanto à idade, tinham menos de 18 anos e 20% tinham de 18 a 25 anos. No que se refere à cor, os brancos predominam com 53%, seguidos de 29% de pardos e 12% de pretos. Se for dividir entre brancos e negros, as estatísticas apontam 41% não brancos e 46% brancos, o que destoa um pouco da estatística geral do Brasil onde predominam os pardos e os pretos. Dentre a causa mortes em 2018, predominam, assim como nos outros anos, as armas de fogo (32%), seguidas por objetos perfuro-cortantes (26%) e por agressões físicas (15%).


No caso dos suicídios, de acordo com pesquisas nacionais e internacionais, as chances dos LGBTs se matarem é 20% superior ao suicídio de heterossexuais. No Brasil, em 2018, se suicidaram 11 mil pessoas, 31 casos por dia, já no caso dos LGBTs registramos 100 mortes por dia. Entre as mortes, 60 % dos óbitos são de gays, 31% de lésbicas, 6% de trans e 3% de bissexuais. Chama a atenção esse numero de lésbicas porque elas representam 12% dos homicídios, então a vulnerabilidade psicológica social das lésbicas se suicidarem é muitíssimo maior do que as travestis que representam apenas 6%.


Agora, em termos regionais, os estados que tiveram os maiores casos de assassinatos foram São Paulo com 58, seguido de Minas Gerais com 36 e da Bahia com 20 casos. Em termos de região, a menos violenta é o Sul com um índice de 1,3 assassinatos por cada 100 mil óbitos e o Sudeste com 1,5, enquanto que as regiões mais violenta nos últimos anos têm sido o Norte e o Centro-Oeste. O Norte e Centro-Oeste com 2,8 mortes por 100 mil habitantes e o Nordeste com 2,5, sendo que um dos aspectos dessas estatísticas é a sua variabilidade e imprevisibilidade.


Há anos que os meses de Janeiro e Fevereiro foram os mais letais, e no ano seguinte não. Nesse ano, talvez seja Dezembro e Novembro por exemplo. Dito isso, é preciso ter em mente que para erradicar os crimes contra LGBTs é preciso que haja primeiro a aprovação de leis que criminalizem a LGBTfobia tal como as leis que criminalizam o racismo. Não é justo que o racismo seja um crime inafiançável enquanto que a penalização de um LGBT vai depender da boa vontade do policial ou do juiz. Em segundo lugar, é necessário criar e/ou manter políticas públicas que garantam a segurança da população do seguimento LGBT nos seus locais de frequência, nas delegacias de polícia, no atendimento ao cidadão, etc. E, por fim, é preciso uma maior conscientização da comunidade LGBT, evitando situações de risco e denunciando toda vez que for vítima de qualquer tipo de violência.


Entrevista por Marcelo Natividade e Andrea Paixão

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