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  • Foto do escritorAndressa Monte

Sy Gomes

Em celebração ao Dia Nacional da Visibilidade de Travestis e Transexuais, o Observatório entrevistou Sy Gomes. Travesti, artista, historiadora e ativista, Sy ficou conhecida ao espalhar frases em defesa da causa em outdoors por ruas e avenidas movimentadas de Fortaleza. Com a arte aliada a sua vivência, ela deseja difundir a compreensão de que os corpos travestis e trans são assim como plantas, merecendo um ecossistema saudável para gerar novos territórios de vida ao mundo.


Sy Gomes, travesti, artista, historiadora e ativista (Foto: Arquivo Pessoal)


Observatório: Em um país que mais mata transexuais, como é ser uma mulher trans?


Sy Gomes: Primeiramente, eu me identifico enquanto travesti. Acredito ser um gênero propriamente latino-brasileiro com o qual me identifico e com o qual eu aprendi a viver. Só estou aqui hoje para reconhecer outras travestis. É um gênero que dialoga e negocia com a modernidade e a feminilidade, mas não é efetivamente o que chamamos de mulher.


Afinal, se fôssemos, nossa experiência [travesti] não seria uma experiência do genocídio. E o Brasil é um produto de forças que querem o fim da minha vida, mas eu não penso sobre. Por isso, não falo sobre morte, mas, sim, sobre o quanto estar viva é importante.

O número de mortes [em relação à população travesti e transgênero] todo mundo sabe, está em todos os locais. A Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) trabalha diariamente para ter matérias em todos os estados do Brasil sobre o quanto pessoas trans morrem. Mas, ninguém liga pros números. Então, eu prefiro falar coisas que, efetivamente, toquem as pessoas. Em primeiro lugar, esse dado não significa nada. Mas, imagina só uma criança se descobrindo e se identificando enquanto mulher trans, como a Keron Ravach, ser morta aos treze anos de idade em Camocim.


Quando as pessoas [cis] começarem a entender o que é o impacto de ser morta aos treze anos de idade e o quanto isso leva pessoas trans a não terem o mínimo de acesso à cidadania é que vão entender o que significa morar no país que mais mata pessoas trans no mundo.

Observatório: Como você analisa as políticas públicas de assistência e inserção social à comunidade trans, desde aspectos básicos como acesso a serviços de saúde até a participação no mercado de trabalho?


Sy Gomes: Poucos são os estados que possuem ambulatórios ou centros de referência que falem sobre a assistência às pessoas trans ou que funcionem exclusivamente para. O Estado do Ceará tem o ambulatório “Ser Trans” que tem o limite de vagas para 100 pessoas e ninguém sabe direito como funciona a fila. Então, o acesso ao SUS é negado também, porque não se sabe o que acontece com o ambulatório. É interessante saber que existem iniciativas que promovem a profissionalização de pessoas trans no Brasil, mas a maior parte delas não têm acesso a computador ou vivem outras perspectivas semelhantes. Quando você começa a conhecer realidades diferentes das de pessoas trans residentes, por exemplo no Benfica [bairro boêmio de Fortaleza], você vai ver a falta de acesso à cidadania e aos serviços públicos. Pelo próprio fato da maior parte de nós não ter condição de bancar o processo de retificação [mudança de nome nos documentos de identificação] e, além de retificar, conseguir todos os documentos.


Mesmo sendo uma pessoa trans com certa repercussão dentro de um meio social específico, sou retificada, mas, sem RG, passo por constrangimentos inúmeros. O Brasil, o Estado e as instituições não estão prontos para lidar com pessoas trans.

A própria ideia de nome social tem sido reverberada a partir de uma lógica muito estranha, como se o nome social fosse o nome que a pessoa “prefere” ser chamada, quando na verdade é o próprio nome da pessoa. Então, todas essas noções ainda precisam ser muito bem trabalhadas para que a gente tenha acesso efetivo a políticas públicas e a uma cidadania ampla.


Observatório: Em Dezembro, diversos outdoors cor de rosa com frases estampadas como “Procura-sy travestis vivas vivas vivas no estado do Ceará” foram projetados em ruas e avenidas de grande circulação em Fortaleza, com grande repercussão. O que motivou o nascimento do seu projeto, "Panfletário Sy”?


Sy Gomes: A Panfletária é uma persona que habita em mim e ela nasce no sentido de se perguntar como é feita a memória de travestis e pessoas trans, a partir da lógica da urbanidade. Constantemente, estamos à mercê de algumas situações, como a violência, a prostituição, a falta de acesso a educação e ao mercado de trabalho. Então, a gente habita a cidade de forma diferente. Em 2019, uma amiga minha sofreu um atentado na rua Juvenal Galeno, ao lado da UFC (Universidade Federal do Ceará). Por conta do incidente e de ter acabado de viver um momento de questionamento sobre minha memória, eu iniciei uma colagem de lambes [cartazes] nessa rua enquanto performance.


Em um artigo que falo sobre o Panfletário Sy, disserto sobre como, para mim, a história monumental perdurou a memória dos homens brancos cis através de estátuas, nome de rua, nome de cidade, nome de praça e também como a vida travesti é tão efêmera que talvez o que reverberasse mais em nossa memória fosse aquilo que é efêmero na cidade. Então, [o uso de] lambes, panfletos, outdoors. E até hoje, isso [o Panfletário Sy] tem movido esse questionamento da memória: como fazer brotar debates no meio da cidade.

Observatório: Você é artista, historiadora e ativista. Acompanhamos seu trabalho performático que celebra a memória trans e travesti. Como a arte contribui para essa causa?


Sy Gomes: A arte é minha única forma de falar sobre isso. Eu escrevo textos que têm a poesia aliada à teoria da história e à ciência, tanto quanto outras perspectivas. Para mim, não existe outra forma de falar, senão através da arte - a única forma que acessei. Até porque não quero seguir o discurso daqueles que falam sobre nossa morte, a arte é a possibilidade de falar sobre a vida. Sou tudo isso mesmo - historiadora, artista e ativista -, mas eu não me prendo somente a essas denominações. Sou uma pessoa que elabora arte a partir da minha vida.


No meu cotidiano, não vivo sem arte. Então, estar viva é fazer arte. Logo, não tem como a arte contribuir para algo assim, se eu sou a própria arte.

Sy em performance artística sobre sua pesquisa “Travestis são como plantas”

(Foto: Arquivo Pessoal)


Observatório: Você poderia falar sobre essa premissa de seu trabalho do corpo travesti como “planta”?


Sy Gomes: “Travestis são como plantas” é uma afirmação que nasce a partir do meu interesse nas plantas, na perspectiva do cultivo. Então, eu começo a estudar feijões, o tempo de brotar e o aguar e a ver [a semente] brotar e se tornar uma plantinha com as células se multiplicando a ponto de tecer um tecido vegetal, folhas, respiração - todos os sistemas biológicos que habitam em uma vida vegetal. Observando, eu pude começar a notar que a vida travesti também passa pelos mesmos critérios. Então, eu me pergunto muito no começo do processo do [pensamento] “Travestis são como plantas” sobre quais são os fatores químico, físico e biológicos que constituiriam um ecossistema saudável para travestis e pessoas trans e, de modo geral, como tornar o mundo um ecossistema saudável para nós.


Com quais memórias devemos trabalhar? Quais são os eventos ou as experiências na vida de uma pessoa trans que efetivamente promovem o alongamento da sua vida? E da minha, principalmente? Travestis são como plantas e precisam ser cultivadas, fertilizadas; precisamos, logo, ter acesso a experiências que alonguem nossa perspectiva de vida.

Observatório: Quais são suas perspectivas de futuro?


Sy Gomes: No futuro, nós seremos as plantas que dominarão as cidades. Onde as ruas não existirem mais e os homens já não puderem mais dominar, as travestis serão as plantas que irão quebrar o asfalto, entrar dentro dos prédios e dominar o mundo. Nós também seremos os últimos líquidos que a terra há de dar. E para viver nesse novo mundo, só tenho uma perspectiva: a perspectiva de vida. Se não nos oferecerem vida, nós seremos o fim. E o fim será o começo de uma era composta por nós.


Entrevista por Andressa Monte





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