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Deborah Martins

  • Foto do escritor: Equipe do Observatório
    Equipe do Observatório
  • 7 de fev. de 2021
  • 7 min de leitura

Celebrando o Dia Nacional da Luta dos Povos Indígenas neste 7 de fevereiro, o Observatório entrevistou Deborah Martins. Mulher lésbica, indígena da etnia Pataxó e dona da página @alecrimbaiano no Instagram, Deborah dialoga sobre pertencimento, reconhecimento e a importância disso em sua trajetória. Mostra também uma perspectiva de gastronomia anticolonial e cozinha consciente, que influencia diversas pessoas para a mudança de suas relações com a alimentação.


Deborah Martins, 26 anos. Lésbica, indígena e ativista (Imagem: Arquivo Pessoal)

Observatório: Deborah, vamos começar com o principal: como é ser indígena e LGBT?


Deborah Martins: Eu sou indígena, mas estou em contexto urbano, não sou aldeada, não cresci numa aldeia. Passei boa parte dos relacionamentos não tendo uma ideia muito translúcida de quem eu era dentro daquele relacionamento. Sempre me entendi como indígena, mas em certo momento da minha vida negligenciei isso. Porém, vi que entender quem eu sou era 90% do caminho para entender meu lugar no mundo. Onde eu estou, onde vou estar no futuro, onde estive no passado, porque relacionar essas idas e vindas são importantes. Então decidi fazer meu resgate étnico com meu povo e as lideranças do meu povo.


Me assumi com 14 anos, muito nova. A minha família foi maravilhosa, todo mundo me acolheu muito bem, não teve ninguém que apontou o dedo, e isso foi fundamental. Porque acho que quando a gente tem esse apoio dentro da nossa própria casa, não te atinge tanto o que vem de fora porque você sabe que tem com quem contar quando tiver em casa. Isso significa muito vindo da minha família. A gente é do interior do Nordeste do Brasil, uma família muito tradicional, com rituais muito bem demarcados, as ritualísticas de toda espiritualidade, relacionamentos interpessoais... Então ver meu avô de 80 e tantos anos se abrindo esse tipo de conversa, de acolhimento, foi impagável.


Eu enquanto mulher lésbica sempre tive muita firmeza, muita segurança de como me portar em sociedade. Entender quem eu sou e entender que a minha existência é uma existência política já é revolucionário. Mas sentia que não estava 100% completa porque não acolhia minha parte indígena e isso afetava minhas relações, porque passei a vida toda tentando me embranquecer. Eu dava preferência por estar sempre em círculos sociais de pessoas brancas, porque na minha cabeça se me misturasse o suficiente, seria uma delas. Mas isso só me rendeu traumas e terapia porque você não se sente aceita e acha que não pertence a lugar nenhum e que nunca vai se sentir à vontade no meio de pessoas. Isso me fez ficar extremamente reclusa.


Passei por vários relacionamentos tóxicos porque era muito fácil me moldar, me colocar numa caixa. Depois de um tempo, entendi que existe muito essa questão da invisibilização. Muitas vezes, me relacionei com mulheres não indígenas que claramente tinham vergonha de se relacionar comigo ao perceber que eu tinha consciência de tudo, de me reconhecer como indígena, e do papel e da posição política desse reconhecimento. E minha ficha foi começando a cair daí.


Observatório: Quais experiências foram essenciais para seu entendimento e reconhecimento como mulher indígena?


Deborah Martins: Eu morei no Rio de Janeiro por um ano e meio, e isso me fez acordar muito mais rapidamente, porque no Nordeste e no Norte a cultura indígena deixou uma herança na "cultura nordestina". O que as pessoas acham da cultura nordestina na verdade é uma colcha de retalhos da cultura indígena com cultura negra. Percebi que o que era minha cultura, o que tenho de bagagem, afetava diretamente as outras pessoas que não estavam acostumadas.


Minha cidade é muito pequena, é uma cidade que as pessoas não te conhecem, elas conhecem a sua família. Quando eu saí de Alcobaça foi um baque muito grande perceber que o jeito que fui criada e o funcionamento da minha comunidade afeta e incomoda as outras pessoas. Quando morei no Rio de Janeiro, trabalhei num restaurante na zona sul e era um restaurante muito caro, então dava gente muito rica, muito gringo. Ouvi as piores coisas que você poderia ouvir na vida como mulher indígena, porque mesmo a gente não falando, as pessoas percebem e tentam nos colocar num estereótipo que não existe.


E é o que eu sempre falo: a pessoa indígena nunca tem o direito de ser vista como uma igual. Ou ela está muito abaixo de uma pessoa branca, ou ela está muito acima, é uma “deusa intocável”, e aí começam a sexualização e a fetichização.


Pedi demissão do trabalho, por começar a me chatear muito, sabe? E nessa época já tinha iniciado meu resgate, frequentava círculos de mulheres indígenas, que tinha bastante lá no Rio de Janeiro, e decidi voltar para Bahia. Queria conversar com a minha família porque quem está interessado no resgate primeiro tem que conversar com a família, pois é dali que vão surgir informações.


O meu maior medo é de ir embora e não deixar nada para as próximas gerações que as façam sentir orgulho de serem quem são. Eu entendo como uma missão de vida passar essa responsabilidade para as próximas gerações, porque nós somos um povo que está em extinção desde 1500. A gente está sendo caçado, sendo morto. É genocídio. Você não tem a liberdade de usar um grafismo sem ser ridicularizado, sem ser olhado. A sociedade brasileira nunca esteve pronta para aceitar nossa presença.


O Brasil é um projeto colonial que tem como objetivo acabar com Pindorama. Quando me perguntam se eu sou brasileira digo não sou brasileira, sou indígena. O Brasil é um projeto que foi criado para me matar, me calar, me silenciar me apagar da sociedade. Então, os rastros e as marcas que deixo para as próximas gerações são provas de que esse projeto colonial está falhando.

Eu quero deixar esse legado porque sinto que nós indígenas temos um senso de coletividade que as pessoas não-indígenas não têm. Elas não entendem. Então, o que eu faço reflete na minha comunidade, o que eu ganho precisa voltar para a minha comunidade. Se faço uma graduação, se termino um curso, qualquer coisa, tenho a sensação de dever! Mas não é aquela coisa pesada, é uma coisa que faço por prazer, porque eu não estaria aqui se não fosse pela minha comunidade.


E muitas coisas sobre mim eu descobri. A questão da culinária, por exemplo. Minha família toda cozinha. Meu bisavô era padeiro, minha bisavó fazia doces; meu avô, tios e primos são pescadores; mulheres da minha família são cozinheiras maravilhosas. Aí entendi o que sou eu, do que eu sou feita, e comecei a me aceitar e impor limites, e falar: “Não vou ser tratada dessa forma”.


Hoje estou num relacionamento que me permito ser eu e falo com convicção que é o primeiro relacionamento em que me sinto eu mesma. E devo isso à minha parceira, por ter respeitado meus limites, e a mim, por ter imposto esses limites. Por entender comigo mesma quem eu era e como me manifesto politicamente como mulher lésbica e como mulher indígena.


Não sei como vai ser para a minha comunidade quando eles me entenderem como mulher lésbica, mas a LGBTfobia é uma estrutura que vem de conceitos coloniais. O povo Pataxó é um povo que têm contato com os invasores há mais tempo; foi na costa da Bahia que eles desembarcaram, então não devemos exigir que as coisas sejam iguais a como eram antes de 1500. Houve influência da colonização e da catequização, e esses conceitos vieram com os colonizadores, que os costuraram de uma forma que é muito difícil desconstruir. Preconceito, monogamia, estereótipos de gênero. Antes de 1500, essas discussões não existiam para a população indígena, é uma conversa que a gente precisa ter com o nosso povo, mas também não podemos querer que as coisas aconteçam da noite para o dia.


Hoje eu me encontro plena como uma mulher que se relaciona com outras mulheres porque entendo a minha sexualidade, entendo minha questão de gênero dentro de uma perspectiva não-colonial.

Observatório: Como você aborda essas questões, considerando que há não-indígenas no seu público do Instagram?

Deborah Martins: Eu não meço as minhas palavras para falar com não-indígenas. Se quiser entender, você entende. Minha conversa é com meu povo, com minha comunidade. Quando penso em trazer um conteúdo, penso primeiro nos meus parentes, depois eu penso nos não-indígenas. Penso que em algum lugar do país vai ter um parente que vai se beneficiar com o conhecimento que eu estou compartilhando, e é uma troca, sabe? Se agradar os meus parentes, eu posto.


Observatório: Como surgiu a ideia de criar a página e abordar sua relação com a comida, suas influências, etc?


O Alecrim Baiano surgiu em abril do ano passado. Eu precisava de uma válvula de escape, porque era início de pandemia. As coisas estavam muito turvas, estava cursando ensino remoto, sem ver as pessoas que gosto, e aí falei: “bom, preciso ocupar meu tempo, mas quero fazer isso de uma forma que outras pessoas aprendam junto comigo”. Eu aprendo no Alecrim Baiano mais do que ensino. Pensei: “Eu vou criar uma página para mim e vou divulgar, e se as pessoas se relacionarem com o que eu tô apresentando, perfeito”.


No começo o nome seria “Urucum Baiano”, mas estava fazendo aquela zoada na minha cabeça e pensei “vou para o caminho das ervas, dos temperos”. Tempero é uma erva que serve tanto para deixar sua comida mais saborosa quanto para uma medicina ancestral. O alecrim é muito bom para dores na cabeça, nas articulações e dores generalizadas. Não é o tempero que eu mais gosto, mas é um tempero com uma força de limpeza energética muito grande. Assim nasceu o Alecrim Baiano.


Eu queria conversar com pessoas indígenas sobre gastronomia porque muita gente está acostumada (não-indígenas principalmente) a vários chefes brancos do Sudeste virem pros interiores do Norte e Nordeste, leva para os restaurantes de outras regiões, mudam vários elementos das receitas, vendem e as pessoas ficam, “nossa, comida indígena!".


Na gastronomia indígena, além do preparo ser muito delicado pela história que ele carrega, o prato tem um valor espiritual. Um prato que foi feito só pelo valor financeiro não está te alimentando com nada. Você está só comendo carboidratos, fibra e proteína, propriedades que em uma semana não existirão mais no seu corpo. Mas uma comida que conta uma história, que tem uma multidão de ancestrais por trás carregando aquele prato para sua mesa, é outra coisa. Seu espírito fica alimentado para vida toda, para as outras vidas. Então, queria muito conversar com as pessoas, para que elas começassem a consumir cultura indígena de pessoas indígenas.


Logo Alecrim Baiano (Imagem: Arquivo Pessoal)



Observatório: Por fim, você pode falar um pouco do seu e-book “Umami”?


Deborah Martins: Queria que o “Umami” fosse uma coisa mais pessoal. Escolhi 30 plantas que fazem parte do meu dia-a-dia e eu estou em contato basicamente o tempo inteiro. O intuito é falar sobre essas plantas, que escolhi pelos benefícios, melhores usos, para ensinar como se usa. Ia fazer apenas 10 edições do livro todo à mão com recortes, desenhos, colagens, bem pessoal. Quando abri as vendas, foi tudo muito rápido. Muitas pessoas mandaram mensagens. Mas percebi que passei muito tempo pesquisando, então conversei com minha mãe, minha avó e minha tia. Ao fim, concluímos que seria legal dar oportunidade para as pessoas consumirem esse produto, então criei o e-book. Basta entrar em contato nas redes sociais para fazer a compra.


Entrevista por: Lívia Levinsk

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