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João Silvério Trevisan

Atualizado: 10 de set. de 2020

João Silvério Trevisan é um dos maiores nomes vivos do registro da cultura LGBT. Confira a seguir a entrevista que o Observatório realizou com o pesquisador.

Observatório: Trevisan, você participou dos movimentos pioneiros trazendo a questão gay no país. Você pode nos citar quais os pontos mais marcantes dessa trajetória?

Trevisan: Bom, digamos que o ponto mais importante foi quando eu pensei de fato em alguma coisa que pudesse congregar a comunidade, que na época se chamava homossexual, em torno de direitos para essa comunidade. Na verdade, eu partia de uma necessidade muito pessoal que encontrei quando voltei ao Brasil, depois de três anos de autoexílio entre Estados Unidos e México por conta da situação da Ditadura a partir de 64 aqui no Brasil.

Em 1973, quando eu fui embora, vivi algumas experiências muito contundentes em termos de entrar em contato com movimentos que não tinham chegado ainda no Brasil. A esquerda brasileira era bastante mofada e eu tinha notícia muito vaga de que havia outras áreas além da política voltadas para a instauração do socialismo ou uma discussão mais genérica sobre o que seria uma revolução social, que era o fato mais corrente no período. Os outros setores de transformação social estavam completamente desconhecidos aqui no Brasil.

Então, quando eu tive contato com feminismo, com o movimento antirracista, com o movimento ambientalista e o movimento homossexual, Gay Movement, nos Estados Unidos, pra mim foi uma grande revelação. Foi a revelação de uma necessidade, e da possibilidade de contemplar essa necessidade. E qual era essa necessidade? Era a de me compreender como um cidadão dentro de uma sociedade que pudesse me aceitar não apenas como um favor, mas como uma obrigação se ela de fato fosse inclusiva e democrática. Mas nós não estávamos vivendo numa sociedade nem inclusiva, nem democrática no período.

E o que havia na minha volta ao Brasil em 1976? O que havia de disponibilidade para a comunidade, especialmente a comunidade gay, era uma espécie de açougue. O que se contemplava eram as necessidades da carne. Então você tinha, de certo modo, um pouco de sauna, um pouco de bar, um pouco de cinema, de pegação. Os banheiros eram muito agitados, mas tudo isso eram saídas que nós encontrávamos para poder nos conhecer e nos encontrar, num clima bastante negativo e bastante difícil para a própria comunidade. E eram saídas que contemplavam apenas a questão sexual, que apesar de importante havia uma outra necessidade: a necessidade de solidariedade, de consciência política. A comunidade homossexual brasileira, a comunidade LGBT na verdade, durante muito tempo, era uma comunidade extremamente pobre do ponto de vista de consciência política.


"Naquele momento criar um espaço em que as pessoas pudessem se encontrar e discutir sobre suas necessidades, que iam além do mercado da carne, era crucial pra gente"

Essa necessidade ia desde a angustia que você tinha enquanto cidadão ou cidadã homossexual até a possibilidade de conversar sobre doenças, sobre dores, sobre amores. Nós não tínhamos espaço nenhum para isso. Não havia espaço sequer dentro da esquerda brasileira para os jovens homossexuais compreenderem a suas necessidades específicas. Eu tentei criar um grupo em 1977 e foi um fiasco porque basicamente os rapazes – pois a gente só conseguiu reunir rapazes para tentar iniciar esse grupo de debate - se consideravam culpados de estarem se encontrando para discutir a sua sexualidade quando a grande questão era de fato a luta do proletariado.

Nós começamos do zero. Nós não sabíamos sequer por onde começar, na verdade. Não tínhamos sequer conceitos articulados. Pegamos então emprestado das feministas - e isso aprendi nos Estados Unidos - os primeiros conceitos de sexismo, de machismo, de patriarcado, de sociedade patriarcal. E foi aí que realmente começamos a articular alguma coisa parecida com o movimento de luta pelos direitos LGBTs.

Observatório: Quando é que esse movimento tem um ponto de virada e começa a se organizar? e, nesse momento, qual é o ponto que você acha mais marcante na sua história de luta?

Trevisan: Bom, houve um momento em que, um ano após eu ter articulado aquilo que seria o Grupo Somos - março de 1978 - nós tivemos um debate na Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de São Paulo (USP), cujo DCE convidou representantes de vários desses grupos que eram chamados na época, não inocentemente, de lutas menores para que se apresentassem.

Haveria uma noite para cada um desses grupos, então as feministas se apresentaram, as pessoas do movimento negro se apresentaram, e então chegou a nossa vez. Eu tinha participado da noite do movimento negro e fiquei horrorizado com o que eu vi, foi um massacre em cima do pessoal. Disseram para eles “Vocês estão dividindo a luta do proletariado, vocês são diversionistas, vocês estão diluindo a nossa luta”. Quando chegou na nossa noite, foi o mesmo massacre. O teatro estava lotado. Na verdade, não era um teatro, era um salão, e havia gente sentada na janela de tão cheio que estava. Então começou toda aquela conversa de nos acusar publicamente. Quando eu ouvi uma bixinha que esteve no primeiro grupo e que reclamava de dores de cabeça violenta a cada vez que trepava com homem; quando eu vi ela fazendo o mesmo espetáculo de nos atacar por conta de um conhecidíssimo processo de homofobia internalizada, eu não aguentei.


"Eu me levantei, subi na cadeira e comecei a gritar: 'Eu não vou carregar ninguém aqui nas costas, eu estou tentando, entre outras coisas, resolver um problema pessoal de sobrevivência e se tiver homossexuais aqui na plateia que se manifestem porque eu não quero roubar a voz de ninguém'"

Aí foi uma maravilha porque as pessoas começaram a criar coragem e começaram a dar testemunhos de como era discriminadas nas suas escolas, nas suas famílias e foi uma coisa muito emocionante. Eu joguei o problema de volta e funcionou magnificamente. Essa noite foi inesquecível.

Eu acho que a partir daí eu pude ter uma ideia do potencial que havia na comunidade LGBT. Tanto que, logo depois do debate, vieram à mesa muitas pessoas para perguntar como é que podiam entrar no Grupo Somos, inclusive muitas mulheres, que nós tínhamos a maior dificuldade de trazer para o grupo.

Observatório: Como você vê os movimentos que atuam hoje na luta por direitos e cidadania LGBTs? O que mudou?

Trevisan: Bom, eu acho que o que mudou basicamente - e é uma mudança e tanto - é o nível de consciência política da comunidade LGBT. Eu durante muito tempo fiz críticas severas à comunidade por conta desse baixo nível de consciência política, porque muita gente achava que conquistar os direitos era ter o direito de ir de uma boate para outra, de um cinema para outro e de um bar para outro para “caçar”. E não era bem assim, a coisa era bem mais complexa. Havia uma questão política nata, pois, sendo homossexual, você automaticamente estava confrontando toda uma cultura heteronormativa e disso já você tinha uma resposta ou uma necessidade de resposta política inadiável.

Eu também acho que existem várias formas de se manifestar nesse espaço de internet que nós temos hoje. É muito vibrante tudo que tem acontecido com bloggers e com pessoas gravando no Youtube, tendo a sua página. São pessoas completamente anônimas que resolvem, de repente, começar a falar. As vozes estão se apresentando sem que precisem de representantes. O que sempre me incomodou foi essa necessidade de ter lideranças que pudessem falar no lugar das pessoas. Eu acho que era uma coisa muito perversa. Sempre tive esse problema em relação aos partidos políticos e aos movimentos sociais que estão concentrados em lideranças. Eu acho que essas lideranças têm uma grande possibilidade de roubar a voz da comunidade. Mas agora há quase uma polifonia de vozes ou uma cacofonia de vozes de todos os níveis se manifestando e não apenas se manifestando com protesto ou com análise, mas inclusive criando.

Existe hoje uma coisa chamada artivismo, que é uma arte ativista e não há nenhum pecado nisso. Durante muito tempo, eu fui acusado, por exemplo, de ser um escritor ativista, coisa que eu não concordava porque na verdade era um reducionismo de tentar transformar minha literatura num mero gesto de militância. E sempre me irritou muito isso, mas o que há hoje é esse conceito de artivismo. Assim, você cria arte de fato a partir de um ativismo sem em nenhum momento negar tanto esse ato quanto essa necessidade de estar fazendo uma análise da sociedade, uma crítica.


Além disso, eu acho que tem uma grande manifestação prática nas paradas. Eu considero as paradas uma das coisas mais fascinantes criadas pela comunidade LGBT no Brasil atualmente. Há uma quantidade imensa de paradas do orgulho LGBT no Brasil todo,e o que eu acho crucial é que essas paradas muito frequentemente são criadas pelo público na contramão - inclusive em cidades medianas quando não pequenas - que estão de fato conquistando um espaço a partir de uma consciência muito clara, das suas necessidades e da sua compreensão de uma sociedade inclusiva. Então eu acho que as paradas acabam sendo uma espécie de saída do armário em peso. É uma multidão que sai do armário para fazer o quê? Para celebrar o seu direito de amar.

Em última análise, acho que nós, enquanto movimento social LGBT, estamos contribuindo com a sociedade desse país através de uma reivindicação e, ao mesmo tempo, uma afirmação de algo que talvez seja esta a única comunidade que tenha lutado por isso, que é o direito de amar. Nós estamos ensinando o Brasil como é que se ama de uma maneira democrática e quais são os direitos das pessoas amarem de maneira diversificada. Isso me enche de energia, me enche de alegria porque fica muito claro que estamos contribuindo com a sociedade inclusiva, e não apenas fazendo reivindicações dentro do espaço LGBT, do espaço cultural LGBT. Nós estamos fazendo uma celebração para toda a sociedade brasileira.

Observatório: E como a literatura contribui para essa luta? E como essa luta fornece elementos para a literatura LGBT?

Trevisan: Eu acho que as duas coisas se interpenetram. Eu acredito que a capacidade que a comunidade LGBT tem de criação, de criatividade e no caso da literatura, uma escrita criativa, comprova essa energia da comunidade e ao mesmo tempo comprova também que ela não está apenas reivindicando os direitos, mas propondo que essa sociedade tome parte da literatura brasileira como um todo.

Eu não vejo nada de muito especial, a não ser o fato que nós estamos cumprindo uma promessa que a sociedade democrática deve ter em relação a todos os cidadãos que a compõem. Se nós somos cidadãos e cidadãs compartilhando de uma sociedade democrática, obviamente, nossa criatividade tem que abrir um espaço na criatividade nacional, e nós estamos oferecendo ao Brasil, eu acredito, a nossa contribuição criativa que é muito intensa porque uma das grandes saídas para superação desse massacre, dessa opressão dentro da comunidade Lgbt é justamente através da criatividade. Não por acaso existem tantos atores, autores, dançarinos, cineastas que são LGBTs; é uma forma de superar uma opressão criando, enfim, poeticamente.


Entrevista por Júnior Ratts

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