Thina Rodrigues, uma vida de luta, transformação e irreverência
- Mateus Brisa
- 4 de set. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 9 de set. de 2020

Thina Rodrigues lutava pelos direitos de travestis e pessoas trans (Foto: Fábio Lima/O POVO Online)
Uma mulher preta, travesti, cearense deixa para trás seu legado e percurso inigualável na busca pelos direitos humanos de travestis e pessoas trans. No último dia 29 de junho, a ativista Thina Rodrigues teve uma parada cardíaca devido ao agravamento de infecção por COVID-19. Uma das muitas tragédias de 2020. Ela sentiu os primeiros sintomas na quarta-feira anterior e telefonou para amigas e colegas de trabalho, incluindo a jornalista Dediane Souza, 32, que a orientou a procurar um posto de saúde. Porém, Thina decidiu permanecer em casa. Dediane acredita que ela se automedicou e respeita a decisão, entendendo que ainda é “muito difícil” para mulheres trans e travestis fazerem uso dos equipamentos de saúde pública.
Após 15 dias do início das medidas de isolamento e distanciamento social devido à pandemia do novo coronavírus, Thina insistiu em participar do revezamento de funcionários da Coordenadoria da Diversidade Sexual da Prefeitura de Fortaleza, pois, de acordo com Dediane, sabia que muitas estavam precisando de ajuda no cenário pandêmico. Logo foi lançada a campanha “Vakinha LGBT”, que distribuiu cestas básicas para a população trans fortalezense em situação de vulnerabilidade.
“Nós que conhecemos Thina temos um pouco dela em cada uma, seja humor, seja irreverência”, conta Dediane. O legado deixado por Thina é extraordinário. Co-fundadora da Associação de Travestis do Ceará (Atrac), ela lutou por si própria e por outras durante muito tempo, tendo ajudado a construir a possibilidade de uma vida melhor e com mais direitos para mulheres trans e travestis do Ceará. Ainda há muito o que mudar, mas é inegável que Thina representa transformação na sociedade brasileira, na luta por justiça e igualdade.
LEGADO
“Eu sou formada na prostituição, minha faculdade foi a vida”, Thina contou à Revista Entrevista em 2014. Natural de Brejo Santo, fugiu de casa aos 17 anos porque sua mãe não a aceitava. Antes de se reconhecer travesti, trabalhou em uma sorveteria na Praia de Iracema e eventualmente se voltou à prostituição, quando percebeu que conseguiria mais dinheiro.
No início dos anos 90, Thina se juntou ao Grupo de Resistência Asa Branca (Grab), plantando suas raízes na militância pelos direitos da população trans. Em 2001, ela e Janaína Dutra fundaram a Associação de Travestis do Ceará (Atrac), inicialmente vinculada ao Grab. Na Atrac, foi presidente, aprendendo do zero a resolver burocracias e outras demandas. Unindo-se a outras organizações e pessoas, Thina construiu seu ativismo através da coletividade.
“Thina está viva. Thina continua viva. Continua vivendo em nós enquanto ativistas do seu período. Enquanto sujeito trans, ela deixa um conjunto de falas, um conjunto de contribuições (...) para que nós, novas lideranças, possamos nos alimentar dessas narrativas pra continuar essa disputa por uma sociedade melhor”.
Na década de 2010, grandes mudanças foram conquistadas por Thina e suas companheiras de ativismo, tendo como foco e principal resultado o uso do nome social. Em 2012, esse direito foi inserido no sistema educacional cearense, através de articulação junto do Conselho Estadual de Educação. No ano seguinte, o Sistema Único de Saúde (SUS) publicou a Cartilha do Usuário do SUS, que trata do assunto, e imprimiu unidades do Cartão do Usuário do SUS utilizando o nome social de pacientes trans. Posteriormente, o nome social também foi adotado na política de assistência social.
Em 2017, a Lei 10558 foi sancionada, legalizando o direito ao nome social em diferentes esferas administrativas de Fortaleza. Logo em seguida, a equipe da Coordenadoria, incluindo Thina, iniciou a campanha Fortaleza das Diversidades, segundo Dediane. O objetivo da campanha era visitar as unidades básicas do SUS da capital e conversar com as equipes médicas sobre a importância do respeito ao nome social de pessoas trans. Thina esteve presente em todas as visitas.

Thina falando, em 2017, para um grupo de policiais sobre a importância do respeito à vivência trans (Foto: Divulgação)
SAUDADES
Dediane encontrou Thina em 2008, quando aquela ainda estava no início de seu processo de transição, e Thina afirmava que Dedé (apelido usado por Dediane, à época) era, na verdade, Dedéane. Desde então, as duas compartilharam experiências no ativismo, no local de trabalho e em suas vidas pessoais. Para Dediane, Thina hoje se junta a outros nomes, como Janaína Dutra e Luiz Palhano Loiola, no rol de indivíduos de grande importância para o movimento LGBT. Além disso, a ativista também é responsável por entregar seu legado às pessoas que já começaram ou que vão começar sua luta no ativismo. “A partir da memória dela, viva, contada e sistematizada, é importante dizer que Thina deixa contribuições em vários espaços na história”, relata Dediane.
A despedida de Thina também é um alerta para outras questões que perpassam a vivência trans. De acordo com dados do Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, 100 pessoas LGBT foram assassinados no Ceará de 2017 a agosto de 2020. Travestis e pessoas trans foram as vítimas de 57% desses casos. Apenas um dos crimes foi a julgamento, o assassinato da travesti Dandara dos Santos, ocorrido em fevereiro de 2017. Os números refletem o ataque constante a essa vivência, fenômeno que, segundo Dediane, deve ser debatido e discutido em todos os espaços possíveis da sociedade, do Ministério Público à Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social. “Mataram 100 [pessoas] com requinte de crueldade, foram 100 LGBTs numa perspectiva dessas pessoas já estarem vulneráveis antes do seu assassinato, muitas delas já tinham sido assassinadas socialmente”, ressalta Dediane.
“A gente fica muito triste com a perda de Thina, com a perda de outras companheiras que foram vitimizadas pelo COVID, mas a gente fica revoltada com os assassinatos dos nossos irmãos e irmãs trans e travestis, que tinham histórias brilhantes e foram assassinadas por estarem num contexto de vulnerabilidade”.
Dediane acredita que precisa ser demandada uma rede nacional de protocolos e organizações que busquem promover a reinserção dos indivíduos LGBT na plena cidadania. Para ela, a pauta LGBT precisa de diretrizes institucionais nesse sentido, como acontece em outros âmbitos, como nos direitos da pessoa idosa, que são promovidos a partir de legislações e estatutos. Além disso, há a carência de um fundo orçamentário dedicado exclusivamente à promoção de direitos da população LGBTQIA+ e ao combate à LGBTfobia.
Isso só acontecerá, Dediane pensa, quando o Estado começar a reconhecer as vulnerabilidades e fragilidades da população LGBTQIA+, resultantes do preconceito contra orientação sexual e identidade de gênero. “Se existe uma naturalização da violência contra esses corpos, se essas vidas são tidas como menos importantes, a gente precisa estudar e formular protocolos para reconhecer essa violência”, afirma a ativista.

Foto: Mariana Parente
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